Governo Fujimori
esterilizou mulheres, na maioria pobres, analfabetas e indígenas.
Alberto Fujimori |
NOVA YORK — O Peru comunicou nesta semana à Comissão Interamericana
de Direitos Humanos, em Washington, a decisão de reabrir a investigação sobre
os casos de 2.074 mulheres esterilizadas sem consentimento em um programa de
controle populacional realizado pela ditadura Alberto Fujimori durante os anos
90.
O inquérito já tem 14.357 folhas, em 23 volumes, e há 12
anos adormecia em um arquivo do Ministério Público, em Lima. Desde outubro do
ano passado essa comissão da Organização dos Estados Americanos pressionava o
governo Ollanta Humala pela reabertura do caso.
Elas não foram as únicas vítimas desse capítulo ainda pouco
conhecido da etapa de barbárie política que prevaleceu na América do Sul na
segunda metade do século XX. O governo Fujimori esterilizou, por cirurgia de
ligadura de trompas, 314.605 mulheres com idade entre 15 e 49 anos, na maioria
pobres e analfabetas, indígenas residentes em áreas remotas da selva amazônica.
É o que indicam documentos do Plano Populacional, iniciado em meados de 1990.
Nessa época, as mulheres em idade fértil representavam 41% da população rural
peruana e eram comuns as famílias com mais de cinco filhos.
Fujimori instituiu uma política de Estado, executada no
sistema público de saúde e direcionada a ao estrato populacional mais pobre. O
governo atuou “sem consentimento informado, ou mediante assédio e promessas
enganosas” - constatou o Comitê da América Latina e Caribe para Defesa dos
Direitos da Mulher, sediado em Bogotá, que há uma década batalha para levar os
responsáveis a julgamento por crime contra a humanidade.
Durante uma década hospitais e ambulatórios públicos das
áreas periféricas foram compelidos pelo Ministério da Saúde a cumprir metas
mensais de esterilização feminina - e Fujimori fazia questão de comandar as
reuniões de avaliação.
Médicos e agentes de saúde foram mobilizados, inclusive com
remuneração extra, para atuar em áreas distantes da região metropolitana de
Lima oferecendo um “programa de saúde básica integral” (com ligadura de trompas
compulsória) em troca de alimentos. Em algumas escolas públicas, como na
Universidade Nacional de Tumbes, no norte do Peru, estudantes que cadastravam
mulheres aptas à "Ação Cirúrgica Voluntária" eram premiados com três
pontos percentuais na nota final do curso.
Aos 74 anos, Fujimori vive nos arredores de Lima, cumprindo
pena de 25 anos por corrupção em uma prisão dos sonhos para mensaleiros
condenados: 10 mil metros quadrados de área exclusiva, com cozinha equipada,
nutricionista, sala de estar, biblioteca, estúdio de pintura e escultura,
anfiteatro, gabinete médico, jardim, horta, sala para recepções e
estacionamento com vagas demarcadas para visitas e militantes do seu partido, o
principal do bloco oposicionista.
A reabertura dessa investigação, com o objetivo de
responsabilizá-lo por por crimes contra a humanidade, representa também uma
saia-justa para o governo dos Estados Unidos e para a Organização das Nações
Unidas.
Os EUA foram os principais financiadores do programa de
esterilizações em massa comandado por Fujimori. Fomentaram essa política com
US$ 180 milhões, em valores de hoje. O patrocínio começou no governo do
republicano George H. W. Bush, 70 anos - hospitalizado nesta semana
aparentemente por causa de uma bronquite -, e prosseguiu na administração Bill
Clinton, 66 anos. A ONU chancelou, via Fundo para a População que ironicamente
fora criado para reduzir a pobreza e promover os direitos das mulheres e de
minorias.
O respaldo financeiro dos EUA só foi suspenso em 1999,
quando o senador Christopher H. Smith, 59 anos, republicano de Nova Jersey,
recebeu farta documentação do Comitê da América Latina e Caribe para Defesa dos
Direitos da Mulher, e percebeu a dimensão da enrascada em que Washington se
metera: contribuintes americanos estavam financiando uma ditadura civil que
adotava um sistema de controle populacional compulsório, com o objetivo de
eliminar a pobreza. Na essência, uma forma de genocídio.
Smith mobilizou o Congresso, garantiu apoio da bancada
democrata e as remessas de recursos ao programa peruano foram excluídas do
orçamento, já no segundo mandato de Clinton. Na época o senador lembrou que os
EUA não eram "imunes a esse sistema" de eliminação de pobres,
evocando episódio ainda recente na memória americana: o caso Cyanamid.
Em 1978, o grupo American Cyanamid instituiu uma
"política de proteção fetal" para trabalhadoras em idade fértil.
Anunciou que quem quisesse manter o emprego no Departamento de Pigmentos de
Chumbo, onde pagava mais que em outras áreas, deveria se submeter a um processo
de esterilização oferecido pela empresa. A escolha das trabalhadoras era perder
renda ou continuar ali, mas ficar estéril pelo resto da vida depois de um
procedimento cirúrgico, pago pela empresa. Cinco mulheres foram vítimas. Em
1991, a Corte Suprema condenou a Cyanamid por violação dos direitos civis,
proibindo ações do gênero.
A catarse de indignação que a Cyanamid provocou acabou
perpetuada pelo cérebro e mãos de um jovem artista plástico, Hans Haackee,
ativista que em 1969 liderou um internacional boicote à Bienal de São Paulo, em
protesto contra a ditadura militar brasileira.
Mordaz e ferino, Haacke produziu um anúncio: “American
Cyanamid …Onde as mulheres têm uma escolha”. A obra pode ser vista na
fascinante exposição que o museu Metropolitan mantém até 31 de dezembro sobre o
efeito Andy Warhol nas artes no último meio século. São 50 quadros e objetos de
Warhol e de outros 59 artistas, entre eles o brasileiro Vick Muniz.
_______________________________________________________
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário